" 45 "

cada vez que você

apruma uma mecha de cabelo

repassa um batom —-- ajeita o rendado do decote

cada vez que você

põe colar tira colar põe colar

borrifa um perfume —-- dança de rosto coladinho

cada vez que você

sonha sonhos [ céleres

conta contos [ lúdicos —-- infere amores do nosso amor

[ pródigos

cada vez que você

me procura [ e acha —-- me aperta os dedos

[ na mão enlaçada

me ajeita a gola da camisa

[ puída e manchada 

cada vez, ah cada vez!... 

justifica-se minha existência

sem qualquer vestígio de medo ou choro

sem piadinhasdesalentostragédiaspiedades

com gostinho de “quero mais“

  com você - 2021

" 74 "

vós, insensatos e delirantes, 

sem se ater às consequências,

dizeis, “amor”!...

mas “o” sabeis ritualizado em místicas

e líricas castidades,

liberto na eternidade

e confinado a cada instante,

alegria e prazer,

dor e desespero,

acolhimento e guerra?

vós, confusos e enceguecidos, 

dizeis, inadvertidamente, “amor”!...

mas “o” tendes como aconchego, 

saudade imensa,

sorrisos sinceros,

sexo [ de papai-e-mamãe à sodomia

                                                [ de quatro?

mas "o" reconheceis como feliz regresso,

pedaço de vós próprios,

paz e miríade de fascinações,

encontros e desencontros,

perfídias e traições?

ah, vós, mesmo não sendo apropriado, me desculpai!... 

vou meter o pé na porta do inferno,

escalar as impossíveis escarpas do Olimpo,

roubar o sagrado fogo dos deuses,

só prá ter o corpo de minh’amada 

amalgamado - agora - ao meu! 

não me digas! - 2023

" evidence "

 

o caminho tem espinhos

                  cai em precipícios

                  ou, …, sobe à estratosfera

o caminho tem esfinges

                  e oráculos

                  duvida de sua missão

                  sobre-exalta segredos

o caminho se regozija ante as fugacidades da vida

                  excita como uma exótica iguaria

                  encabula ante o ninho abandonado

                  lê mãos como uma velha cigana

o caminho oferece novelos

                               [ cuidadosamente fiados

mas, 

matreiramente, 

a si próprio desfia...

maio - 2015

" 51 "

descalço?... pisa a terra

                               [ ainda que desnuda…

surdo?... ouve a ti mesmo!

sem referências?... livre, caminha!

saudades?... ah, sofre a saudade mais despojada de todas, sofre!

               mas, pisaste “que” terras?!?!

          aquelas de onde vieste

     ou aquelas para onde vais?  

ficar já não é mais possível!

               ouviste “que” músicas?!?!

          as de notas sem sentido

     ou as de notas transcendentais?

ensimesmar-se já não é mais possível!

               por quais caminhos caminhaste?!?!

          aqueles vistos em si mesmos

     ou aqueles vistos em tudo que é estranho?

lembra-te: embasbacar não é mais possível!

ah, as saudades… tantas, a provocar-te ânsias!                                               

e, chora!... com compaixão

                  chora todas as tuas lágrimas.

e, acorda!... acorda bem cedo

                    para viver a tua ilusão.

e, sonha!... sonha a porra da tua vida

                   conspirada sob tédio

                                            [ em profusão.

e, sofre!... a mais despojada de todas as saudades

                                                                  [ será tua libertação!

oco do oco do oco - 2023

" 1 "

tu já vives

um tal mal-estar,

já sentes 

tudo mudar,

já és refém

[ confessa

de todos os erros cometidos

[ por amor…

… que fosse teu fado tirano, que fosse!

… que fosse o tempo inexorável, que fosse!

não seria o eco de palavras [ inapropriadas

                                               que tornaram tudo vão?

ouves?... são odes de Anacreonte?

idílios de Teócrito?

éclogas de Virgílio?

mas, esmiuçada em poemas duvidosos,

ó Marília,

quem amou com tanta sofreguidão a beleza

que a mitigou por excesso de razão?!?!...

onde está a lira? - 1977

 

" fragment 93 "

 

                                                               eis-me aqui [ menina

de mãos pequenas e delicadas

folheando livros [ numa ciranda de palavras

que arrasta meu corpo 

pelas ruas calçadas de “pé-de-moleque”...

eis-me aqui [ mulher

de olhos perscrutantes e ávidos

engolindo fabulosas visões adentro

inacabada como a própria vida

brilhando sonhos à luz do dia

fabulando odisséias ao negror da noite

[ serena, quase patética, grata…

eis-me aqui [ profecia

escorrida entre os dedos

esvoaçada em cada voo de pássaro

vertida em cada lágrima

anunciada em cada alvorada

herdada pelos que amam, pelos que odeiam,

pelos que [ esquecidos

se contentam com “nada”...

eis-me aqui [ consorte da Morte

com aquele suave sorriso de uma mãe que,

celebrando as vitórias dos próprios filhos,

não endereça a Deus um único lamento!...

eis-me, ainda, aqui… prazer, 

sou Martha!

torrentes de saudade de mamãe - 2022

" lacuna 46 "

 

de coisa alguma sei

menos do que sei

quanto a mim...

              esse "eu" que sou

         o mistério de estar vivo

    tanto sofrimento individualizado

apartado do mundo em que estou...

de coisa alguma sei

         menos do que por mim  mesmo aprenderei

              sendo meu próprio aluno

vasculhando-me

[ sem me escapar

e desvendando o divino segredo

que me faz a cada instante

eternamente “(e)star”...

sansara - 1992

" efemeridades "

imagine um simples amor

                  simples que nem sonho

                  simples que nem gota d'água 

                  simples que nem brecha(s) [ entre o corpo e a alma

imagine um simples amor

                  em que não se arquitete o tempo

                  em que as naus partam sem prover destino(s)

                  em que os pensamentos coexistam com os sentimentos 

imagine um simples amor

                  como uma noite aconchegante que cai

                                   [ realçando a luz da candeia                                             

                  como casinhas caiadas [ perpetuadas 

                                                       nas colinas verdejantes

                  como o mundo sem ruínas [ inferido 

                                                            para além das “minas gerais”

imagine um simples amor

                              alegre

                              inocente

                              primitivo

                              arrancando impossíveis lágrimas

                              em “seus” impassíveis olhos 

                                                               [ enceguecidos 

rua Uberaba - outubro/2002

" 53 "

 

ao avesso, sem meta estipulada,

ironia do tempo 

          [ arredio,

verdade - muda - contemporizada… 

alguma coisa faz sentido?

café?... quase moribundo 

               [ requentado.

cartão?... o de ponto, não!... 

           aquele, vermelho, forçado pelo infrator

           aos 44 minutos do segundo tempo.

perfeição?... automutilada/

                         / genitália exposta

                        / ao fio da navalha.   

paranóia?... anjos pousando na laje o tempo todo,

             tardios em seus afazeres,

             balbuciando frases desconexas

             em sussurros encaramujados e frouxos,

             utopias d’uma “Babel” 

                           [ maquiavelizada.

me alija que ilusão?

me desespera que infortúnio?

ah, incontáveis e inomináveis são os gritos

                                     [ extrudidos no peito 

conformando “Evas” de mais uma costela

                               [ em laceração!

arábicos - 2023

" inconcepto 22 "

giro os olhos/ gira o mundo

                   / giram as coisas todas

cinzeiro barbeiro limoeiro/ nevoeiro paneleiro, tudo-eiro

giram as palavras/ aids blecaute ventilador

café areia corruptor/ gira vida/ gira morte

                              / gira caos/ gira sorte/ gira gira/      g      i      r      o      u

contexto comum

contexto próprio

                                                                                           concreto abstrato coletivo

                                                                                           tosse estranha, voz rouca

pigarro estranho, muco e sangue

respiração profunda, a alma isenta do corpo [ só

gira função/ gira forma

amor-próprio, sujeito e predicado

gira núcleo

adjunto adverbial, verbo transitivo e objeto direto

gira pronome

advérbio, verbo e substantivo

gira signo

amores-perfeitos/ Fernandos Pessoas

doces martírios e apimentados heterônimos

                                                                                                           g-----i-----r-----o-----u

                       gira giro/ ridículo bigode

                    gira, gira/ óculos garrafais

sevícias gramaticais/ chapéu atolado na cabeça

                               / legado poético nas caraminholas 

                             / contra a presunção acadêmica 

             de todos/ os boçais!...

  imposto - 2002