quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Seminário: A chuva imóvel (Campos de Carvalho)

# Livro                                



A chuva imóvel (1963) é um romance narrado em uma perspectiva densa, intimista, memorialística, que se caracteriza  por  construções linguísticas  fragmentárias, cujo  narrador protagonista  é uma   personagem  outsider que,  além  de questionar o “lugar comum” das instituições (às  quais  nos submetemos)  e  transgredir  os  valores, as normas  e  os  procedimentos adotados pela sociedade “politicamente correta”, está em profundo conflito consigo mesmo.


Procurar onde mora Andréa, onde eu moro, seria o mesmo que procurar o útero de nossa mãe depois de tê-lo perdido: o mundo aqui fora é que é o meu, na rua, neste ou em outro beco qualquer - junto dos que fogem sem saber por que fogem: não de minha família. Os Medeiros são apenas os Medeiros, descobri isto muito antes de estar aqui - e para isso me arquivei no Arquivo, para arquivar o meu Medeiros. Encontrá-los vivos ou mortos não resolveria o meu problema, muito menos o problema do mundo. (CARVALHO, 1973, p. 94)


Um rato não teria esta lucidez de um homem, mesmo assim acuado, neste frio e acuado, sabendo que vai morrer porque resolveram que vai morrer, os donos dos ratos, os donos da ratoeira, por coincidência os mesmos donos dos homens, os donos desta ratoeira para homens - mas por mera coincidência, nada mais do que isso. Nem, se eu fosse um rato, estaria agora protestando contra esta condição de rato que me é imposta, imposta mas não imposta, simplesmente não estaria protestando, e continuaria rastejando sem protestar, morto por morto cada um tem o seu dia e este seria o meu dia. (CARVALHO, 1973, p. 115)   

# Autor do livro                


Walter Campos de Carvalho é mineiro de Uberaba. Nascido em 1916 e falecido em 1998 foi procurador do estado de São Paulo, tendo colaborado como os jornais “Estadão” e “Pasquim”. Ainda praticamente desconhecido pelo grande público leitor, teve atuação destacada no cenário literário brasileiro, tendo publicado os ensaios humorísticos  “Banda forra” em 1941 e, sucessivamente em 1954, 1956, 1961, 1963 e 1964, mais cinco romances a saber: “Tribo”, “A Lua vem da Ásia, “Vaca de Nariz Sutil”, “A Chuva Imóvel” e o “Púcaro Búlgaro”.


* Entrevistas youtubadas:

https://www.youtube.com/watch?v=MnWjtQi9asc&t=347s

https://www.youtube.com/watch?v=Tga5VYlD46k
https://www.youtube.com/watch?v=Ae0Aj9VkVH8



# Artigo a ser apresentado 

Título => O fluxo da consciência em A Chuva Imóvel de Campos de Carvalho

Resumo => A partir das relações entre o instinto de vida (Eros) e o instinto de destruição (Tanatos), consubstanciadas pelas ações e atitudes anárquicas e/ou libertárias dos principais protagonistas envolvidos, nos propomos a focar/discutir a temática do fluxo da consciência. No contexto de uma visão de/da família, reconhecida como legítima representante do status quo, observamos o modo como André Medeiros promove o questionamento e a sabotagem da ordem doméstica, reivindicando um espaço individual em contraposição à supervalorização dos valores coletivos adotados pelo modus operandi da sociedade patriarcal.


Palavras-chave => Campos de Carvalho, coletividade, corpo, destruição, família, individualidade, pluralidade de vozes, poder, sociedade, subjetividade, vida.   
 

1. Introdução                    

De que se trata?... Filosofia gratuita, poesia hermética, prosa maldita, misticismo enviesado, satanismo disfarçado, protesto solitário, anarquia declarada, apocalipse às avessas, humor nonsense, ensaio claustrofóbico ou confissão criptografada?… ?!?!... Entretece-se a história sombria, densa, lúgubre, picante e incestuosa de André Medeiros e Andréa, sua irmã gêmea. Após as mortes do irmão ciclista e do pai extremamente autoritário, André se digladia com seu nefasto alter ego, (um)a  “coisa” satânica, em uma inusitada arena: seu próprio íntimo.

Quando deixei de andar? - quando ele deixará de andar? - essa Coisa, esse ectoplasma de merda, essa nuvem que talvez seja Deus ou uma de suas moléculas, um dos seus átomos, assim de repente reduzido à sua última expressão, e eu dentro dela? Quando pelo menos me deixará em paz, me exterminará de uma vez se for o caso, e deve ser o caso, simplesmente me exterminando, como eu fazia com a pulga quando eu era um deus, um deus para as pulgas, ou simplesmente o Inimigo, assim pousado agora sobre mim como uma montanha, uma montanha andando, um ectoplasma e uma montanha, mais do que posso compreender e do que quero compreender? (CARVALHO, 1973, p.  99)

2. Análise/interpretação  

Estrutura narrativa => caótica, dividida em três partes: “O centauro a cavalo”, “Girassol, giralua”  e  “Zona de Treva”. Configurando uma angustiante e progressiva degradação do protagonista, que culminará em seu suicídio, entremeia-se ao discurso presente uma sobreposição alucinante de episódios (lembranças da infância e da adolescência de André).   

Personagens fundamentais => André Medeiros, Andréa Medeiros (sua irmã gêmea), a família “falecida” de André (irmão ciclista, pai, mãe e avô), Aristeu, Diomira, Hugo, Marcelo, Otávio, Eulália, Castanheira, Clara, madame Só-Só, a filha de madame Só-Só e o filho do coletor. As duas primeiras personagens são consideradas “principais” e as demais são consideradas “secundárias”.

Grau de densidade psicológica => a personagem André Medeiros pode ser classificada como “redonda”: imprevisível, apresenta alta complexidade no que se refere às tensões e contradições que caracterizam a sua psicologia e suas ações (e que, no fundo, caracterizam a caótica condição humana). Na sua percepção, Andréa o completa, assim como ele a completa, e a junção destas duas “metades” é condição sine qua non para mitigar um inegável sentimento de ausência de si mesmo pois, na origem de tudo, tais metades não eram um só todo na placenta de sua mãe?
Incompetente em tornar-se um diplomata, revoltou-se contra os valores de sua família (e, por tabela, da sociedade considerada politicamente correta), o que o levou a “rifar” sua vida interior em uma maçante ocupação  de arquivista e, posteriormente, a se suicidar.         


A personagem Andréa Medeiros pode ser classificada inicialmente como “plana-estereótipo” pois é introduzida na trama como (um)a típica “menina-moça” que vivencia as incongruências da castidade confrontada com a explosão das glândulas e dos hormônios, inocente e sensual - ao mesmo tempo. Após a suposta relação sexual com seu irmão gêmeo André, pode ser considerada uma personagem “plana com tendência a redonda”, pois deixa de ser a estereotipada “menina-moça” para se transformar no fator de completude de André, transformando o protagonista em “André-Andréa-André”. Diferentemente do irmão, predisposto sempre ao confronto, Andréa, além de saber transgredir, sabe também dialogar e/ou interagir com o mundo civilizatório. É a resiliência personificada.


O irmão ciclista pode ser inicialmente considerada uma personagem “plana-estereótipo” pois, ao se iniciar a narrativa, é caracterizada como um mero mensageiro repudiado pela família, “estafeta para os outros”; depois de André entrar para o arquivo, pode ser considerada uma personagem  “plana  com  tendência  a redonda”,  pois  deixa  de  ser  o  estafeta asmático para ser envolto em uma aura fantástica, quase santificada, ”tlim-tlim-tlinando” a  bicicleta no silêncio das madrugadas; o narrador ao declarar que “o ar não é para todos”, ascende o irmão a um patamar de pureza único, desqualificando todas as demais pessoas - inclusive a si próprio - para compartilhar o mesmo ar.   


Demais personagens => todas são “planas-estereótipo”, caracterizadas por signos específicos, tais como: o filho do coletor, com sua luz fosforescente no meio da testa, Diomira, apetecível sem os óculos, Otávio, embarricado atrás dos códigos, Castanheira, sempre com o canivete na mão, o avô, autoritário e bolinador, o pai, violento e abusivo etc.         


Narrador => usa a primeira pessoa do discurso para narrar; sendo “protagonista”, vincula o registro de pensamentos, percepções, sentimentos, explosões sensoriais e catarses à sua própria experiência/vivência.


Influência do cinema =>
as lembranças de André, ao invés de serem compartilhadas em tempo cronológico,  obedecem tão somente a livre associação de ideias do narrador em um tempo psicológico, como se fossem rápidas tomadas de cena de um filme. Analogamente à montagem/edição cinematográfica (em que ocorrem seleção, ordenação e ajuste dos planos de um filme a fim de se alcançar o resultado desejado, seja em termos narrativos/informativos, dramáticos, visuais e, quem sabe, até experimentais) percebemos a utilização de recursos técnicos bastante conhecidos, tais como, por exemplo, corte (interrupção de uma tomada de cena - que está sendo captada pela câmera - e imediata passagem para outra imagem), panorâmica (movimento de câmera em que esta não se desloca, mas apenas gira sobre o seu próprio eixo horizontal ou vertical)  e  travelling (todo movimento de câmera em que esta efetivamente se desloca no espaço), conforme se pode constatar, sucessivamente, abaixo.


Aqui não há nenhum horizonte, há apenas esta rua e estas paredes, este beco sem saída ou com saída: - mas este é um motivo a mais para eu me lembrar de que sou um homem, mesmo que seja apenas um homem suspenso de uma corda, suspenso e não suspenso.


E agora - este cheiro de putrefação!  (CARVALHO, 1973, p. 92)


E estas portas e estas janelas, não me arrisco a bater em nenhuma delas, basta-me este silêncio aqui de fora, o meu silêncio, não preciso de que me atirem pelo rosto nenhum outro silêncio, nem tenho um rosto para que me atirem, nem tenho um rosto, apenas este silêncio no lugar de rosto. E se não abrem é porque ninguém quer sair, ou ninguém quer entrar, e estão fechadas porque já estão fechadas, definitivamente fechadas como as portas ou as janelas de um sepulcro, um sepulcro com portas e janelas, cada casa um sepulcro, como estas paredes que vão até as nuvens. (CARVALHO, 1973, p. 100)


Não há dormentes, apenas os trilhos, eu no meio deles, surgiram assim repentinamente mas há muito que me acompanham, que os acompanho, posso vê-los atrás mesmo sem vê-los, estou dentro destes trilhos há milênios, há milhões de anos, hão de me querer levar a alguma parte, estão me levando. (CARVALHO, 1973, p. 112)  


Intriga => se estabelece entre dois fulcros: André conflitando consigo mesmo e André conflitando com o mundo. Consolida-se, então, entre o narrador “protagonista” e as demais personagens uma série de motivos (unidades temáticas mínimas) para o desenvolvimento do conflito dramático, destacando-se: primeiro amor (Clara), descoberta do apelo sexual (filha de madame Só-Só), amor incestuoso (Andréa), relações entre corpo/poder/subjetividade e inadaptação à civilização (autodegradação e suicídio), desejo de ser autônomo/independente (ruptura com a família), satisfação dos desejos como forma  de  alcançar  a  plenitude/otimização do ser (transformação em um centauro), oposição à normatividade social e condição “marginal” (aversão aos trilhos e às rotas programadas), banalização dos ritos familiares (secundarização do evento “falecimento do avô”), violência doméstica e abuso sexual (agressões perpetradas pelo pai), bullying e propagação do medo (Castanheira), manifestação de irrestrito protesto (cuspes em forma de chuva imóvel) etc.


Espaço => excetuando-se a relação mantida com Andréa, o esvaziamento do espaço proposto pelo texto reflete o próprio esvaziamento que André percebe/sente no âmbito social/familiar. O autor, então, utiliza o recurso de “espacializar” o tempo, depauperando a cronologia e bagunçando propositalmente passado, presente e futuro - enquanto André surta/agoniza - no afã de sugerir/revelar relações psicológicas entre os acontecimentos reais e irreais que vão se tornando simbióticos. Se há um espaço que possa ser considerado principal não podemos nos furtar de elegê-lo como sendo o imo/íntimo de André, destinando atenção secundária à casa da família Medeiros e aos demais espaços reconhecidamente tidos como urbanos/civilizatórios.


A ambientação (identificação do modo como o “clima/atmosfera” é construído pelo narrador) classifica-se como reflexa, pois a narrativa privilegia e/ou focaliza personagem(ns) que, a partir de sua percepção ou ponto de vista, constrói(em) o ambiente onde se desenvolve a ação  e  o (elemento que introduz o conflito dramático) se dá quando André entra em conflito com o mundo civilizatório e consigo mesmo.


Por fim, o clímax se manifesta quando André, agonizante, revê sua vida e contabiliza seus pecados, enfatizando o amor incestuoso que sente por sua irmã gêmea, Andréa, e o desfecho é caracterizado pelo “estrangulamento perfeito”, em que a insubordinação e a resistência são levados além dos liames da vida, pois que a “consciência” de André, já morto, tal qual o/um fenômeno fiat lux, reverberará protestos por toda a eternidade.


Tentaram reduzir-me a pó e não me reduziram, aqui estou eu com a minha corda e com a minha consciência, íntegro e íntegro, fora do alcance de suas armas de longo alcance, de suas experiências homicidas ou suicidas, fora do seu sistema solar ou de qualquer outro sistema - eu o rebelde, o rebelado, mesmo que apenas um desertor: o desertor no deserto.


Levarão séculos para me içar, se é que estão realmente içando, e enquanto dure esta longa ascensão do meu cadáver, mas também do que está dentro dele, eu e não ele - continuarei minuto a minuto a cuspir-lhes do fundo de minha consciência, com esta corda no pescoço mas cuspindo, em sinal de protesto e sobretudo de nojo - por mim e por todos esses que morreram nos meus testículos, que morreram ou que estão morrendo, juntamente comigo morrendo, nesta matança dos inocentes.


Mesmo morto continuarei dando meu testemunho de morto. Esta chuva imóvel serei eu que estarei cuspindo. (CARVALHO, 1973, p. 119)


3. A pluralidade de vozes 


Incorporam-se nessa narrativa (poderiam ser considerados fenômenos mediúnicos?) para protagonizar os dilemas existenciais de André Medeiros, que se percebe exposto como uma mera peça de uma engrenagem sócio-econômico-política, o próprio André, Andréa, o irmão estafeta e um(a) “Coisa”, cujo anonimato aponta para uma discussão sobre o estar no mundo e sobre a busca de identidade a que tanto aspira o indivíduo que vive em sociedade e/ou  condicionamento social. As “batalhas”, sejam elas de natureza exterior (o conflito do eu com o mundo) e/ou interior (o conflito do eu consigo mesmo), travadas  pelas personagens proporcionam uma polemização sobre vários tabus, intensificando-se a narrativa por meio de imagens e símbolos que sugerem/evocam a necessidade de uma análise mais complexa dos mistérios confinados na consciência individual e pela supervalorização técnica do fluxo da consciência, como se pode ver nos três exemplos que se seguem.



Mandei a diplomacia à merda, todas as diplomacias, fui visitar o Castanheira no cemitério e beijei-lhe a lousa, grande Castanheira! - depois me lembrei de sua lepra, vomitei-lhe em cima, pura cerveja, quando vi estava deitado num túmulo ao lado a dizer impropérios, havia um resto de lua, mandei também a lua à merda. Em casa acordei Andréa para perguntar o que ela estava fazendo com aquele corno na cama, manda esse corno à, veio meu pai, minha mãe, o biltre nem sequer se levantou dos lençóis, aí morreu nosso irmão eu dizia, vosso filho, aí nesse lugar, ainda sinto o cheiro dele, lá estão os seus olhos - a custo me arrastaram para o quarto, minha mãe assistindo impassível: é ou não é, minha mãe?: - Andréa de camisola encostando-me os seios na cara, o cheiro dos seus seios, só a presença do pai me impediu de violentá-la ali mesmo, nas barbas do pulha. (CARVALHO, 1973, p. 70)


Ainda estão comigo a minha carne e os meus ossos, esteja onde estiver ainda é em mim que eu estou viajando, assim parado mas girando com a terra e o seu eixo, com estas águas e o seu silêncio: com este frio que só pode vir de um corpo imóvel ou projetado no infinito.6 (CARVALHO, 1973, p. 84)


Terríveis são, mas inofensivos: apenas bulldozers. Passam por mim, pela Coisa, e seguem em frente, em fila de um mais um mais um, a intervalos certos, os faróis e o resto atrás dos faróis, sempre em frente, como tudo em Cafarnaum até o fim dos séculos. Deixá-los passar! (CARVALHO, 1973, p. 102)


Na construção do fluxo de/da consciência, então, Campos de Carvalho emprega o artifício de “misturar” passado, presente e futuro à “precisa imprecisão” dos lugares onde contracenam os protagonistas. Não há preocupação exacerbada com a cronologia das ações empreendidas, nem com a delimitação dos ambientes sugeridos e/ou utilizados, pois a tensão dramática vai ser/sendo consolidada no espaço-tempo interior de cada personagem. Mesmo aquelas descrições que dizem respeito ao universo exterior, na medida em que são compartilhadas com o leitor, visam prioritariamente revelar as sensações do universo psicológico das personagens.  


Cada protagonista, ao desvelar a sua história de vida, não passa a representar as mais variadas/contrastantes vozes e/ou interlocuções das ideias que existem no mundo?... Eis, aí, a “magia” do fluxo de/da consciência: no processo de experienciar e interpretar a realidade ocorre a inevitabilidade da “alteridade” (capacidade de se colocar no lugar do outro na relação interpessoal): o que importa não é o que cada uma das personagens “é no mundo mas, acima de tudo, o que o mundo é para a personagem e o que ela é para si mesma” (BAKHTIN, 1997, p. 46).


Bakhtin, em Estética da Criação Verbal, ao tratar da alteridade, resultante da relação entre autor e (anti)herói, demonstra que ao ter vida ”independente”, cada personagem passa a representar uma visão e um juízo de valor sobre a própria existência que, por extensão, desvincula-se (ou se torna independente) da visão e do juízo de valor de seu próprio criador.   


É como se eu estivesse num escafandro e de repente descobrisse que o meu maior inimigo é justamente, não o que está lá fora, mas justamente este inimigo que me protege sem me proteger, esta falsa roupa que assim me deixa mais nu do que se eu estivesse nu, entregue às baratas, a estes milhões de baratas, disfarçadas em chuva ou simplesmente baratas, subindo por estas paredes ou mesmo que não haja paredes, subindo e não subindo, assim paradas no ar, suspensas, grandes ou quase invisíveis - como uma chuva imóvel. (CARVALHO, 1973, p. 98)  


André, como qualquer ser humano autoconsciente, não vive isoladamente, pois necessita de um “outro” em quem vai projetar sua consciência e juízo de valor(es) sobre  
tudo que o cerca (ora confinando-o em um ambiente normativo/repressor, ora permitindo-lhe  transcender tal “canga”). Por isso, tal projeção origina a multiplicidade (desdobramento de consciências) do ser criador através dos diálogos travados consigo mesmo ou com o “outro” em quem projeta seus conflitos.


De uma forma ou de outra não escaparei a este pânico, eles sabem que a véspera ainda é pior do que o dia, fazem-se anunciar de mil modos diferentes, até dentro de mim já os pressinto, sou o arauto deles e a sua vítima: TODOS: os que sabem e os que não sabem. Até os que passam por sábios já o sabem, já não se mostram tão seguros e tremem nas suas cátedras, ou são elas que tremem sob eles. Desconfio que até Deus já desconfie de alguma coisa, o Deus deles, com suas máscaras chinesas ou sevilhanas: acabarão acabando com o seu Deus nesse Apocalipse às avessas, o feitiço enfim voltado contra o feiticeiro, o ventríloquo desventrado: ATOMS OF WORK. (CARVALHO, 1973, p. 24)   



André nega os valores da sociedade/família patriarcal. Nega a autoridade do avô. Nega a  autoridade  do  pai. É  incestuoso. Fracassa  profissionalmente. André  se  degrada!... Mas também se sublima!... Morre, suicida que é, mas vive eternamente!... Tem seios?... Tem, mas também tem pênis. É homem. É “coisa”. É centauro. É Eros. É Tanatos. Eis aí a consolidação do processo de alteridade: uma overdose de identidades e contradições. O encontro entre os múltiplos é catártico: o “um” se vê no “outro” e os seus discursos se imiscuem/interpenetram.


Para Guimarães, em sua proesia denominada via 03, “E aqui começo/ engenheiro das mórbidas palavras/ e aqui meço/ rememorando tórridas obsessões/ este começo/ serpejante rastejar de sáurios/ e recomeço - heroico e grotesco/ e remeço - abolindo maciças fronteiras/ e arremesso/ de apoteose em um dura mutação.// E arremesso/ e remeço/ e recomeço - aqui, este começo/ e meço - aqui, este tropeço/  e começo - aqui, este recomeço/ e começo/ e começo/ e começo…// Sou Hércules, Quasímodo, Antônio Conselheiro…/ Augusto e Haroldo de Campos./ sou todo prosa./ sinuoso amplexo./ despropositado adereço.//” (GUIMARÃES, 2017, p. 19 de agosto).  


As ideias não “batem”?... E daí?... James Joyce já dessacralizou a necessidade de cânones com a verbivocovisualidade!... Os concretistas já dessacralizaram o formalismo da linguagem com a espácio-temporalidade da narrativa!... E Mallarmé jogou uma pá de cal sobre tudo isso ao afirmar que “a poesia se faz com palavras e não com ideias”.


Iremos, contudo, mais além: de todas as aparências sensíveis, o homem - na sua inquieta indagação para a compreensão dos fenômenos - desvela significações. É no homem e pelo homem que se opera o processo de alteração dos sinais (qualquer estímulo emitido pelos objetos do mundo) em signos ou linguagens (produtos da consciência). Nessa medida, o termo linguagem se estende aos sistemas aparentemente mais inumanos como as linguagens binárias de que as máquinas se utilizam para se comunicar entre si e com o homem (a linguagem do computador, por exemplo), até tudo aquilo que, na natureza, fala ao homem e é sentido como linguagem. Haverá, assim, a linguagem das flores, dos ventos, dos ruídos, dos sinais de energia vital emitidos pelo corpo e, até mesmo, a linguagem do silêncio. Isso tudo, sem falar do sonho que, desde Freud, já sabemos que também se estrutura como linguagem. (SANTAELLA,  1983, p. 12)

# Referências                   

BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoiévski. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.          


_________. Questões de Literatura e de Estética (A teoria de romance). São Paulo, Hucitec, 1988.


CARVALHO, C. de. A chuva imóvel. São Paulo: Civilização Brasileira, 1973.


FREUD, S. O mal-estar da civilização. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1969.


GOMES DE JESUS, A. L. & GONZAGA DE OLIVEIRA, J. Corpo, poder e subjetividade: uma leitura de Chuva imóvel, de Campos de Carvalho, e de Lavoura arcaica, de Raduan Nassar. Revista Olho d’água, jun/2016, p. 40-62.  


GUIMARÃES, C. S. Pédivento. Disponível em: <https://pedivento.blogspot.com.br/> Acesso em: 26 de outubro de 2017


HUMPREY, R. O fluxo da consciência. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil Ltda, 1976.


SANTAELLA, L. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983.


# Para reflexão               

https://www.youtube.com/watch?v=3xwvj0Fchkw




Cid Silva Guimarães - 211.038.606-15 - campus Sta Mônica - 2017




Bizu musical --------------------------------- In between days - The Cure

https://www.youtube.com/watch?v=scif2vfg1ug